26.2.09

Nada é mais perigoso do que o silêncio


"«Deve ser horrível ser-se deixada por ti!» Albert nunca mais esqueceu quando é que Marta tinha dito esta frase. Estavam deitados na cama nus, era fim de tarde e tinham acabado de fazer amor. Um silêncio instalara-se entre eles e velava sobre os seus corpos transpirados, mas era tudo menos um silêncio de estranhos. Pelo contrário: era tão familiar, tão íntimo, tão intenso, que chegava doer de puro prazer. Era mais íntimo do que a própria nudez, mais devassante do que tudo o resto que faziam na cama.
E, entao, Marta dissera aquela frase, sem mais nem menos, assim de repente. Ele ficou calado, ela voltou a calar-se, nada mais disse e ficou outra vez o silêncio. Ele lembrava-se de ter chegado a pensar «posso dizer o mesmo», mas nada disse. Para quê? Sabia que Marta tinha razão, sabia que era por causa do que aquela frase encerrava que um dia Marta o deixaria - ela, antes dele.
Essa frase, essa terrível defesa, ele passeara-a depois, ao longo dos anos, ao longo das dezenas de outros corpos ou animais, ou o que se deva chamar a essa cofusa fusão de um corpo que não obedece á cabeça, de sentimentos que afinal não passam de sensações e onde tudo é desesperadamente contraditório: porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer; porque te amo, fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te amar - tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.
Com os anos, «eventually», como dizem os ingleses, Albert tornou-se um brilhante cirurgião nos hospitais. Ele, que verdadeiramente fora avesso à intimidade de qualquer outro corpo que não o de Marta, ocupava-se agora em dar vida a corpos silenciosos e inertes, de que não conhecia os pensamentos nem os segredos. E havia qualquer coisa de indefeso, de indigno, na rendição daqueles corpos entregues às suas mãos. Cortava com minúcia de cirurgião, mas em cada corpo de mulher sofria a ausência de Marta, porque os gestos lembravam-lhe o deslizar dos dedos pela sua pele.
Albert nunca recuperou da ausência fisíca de Marta. Mas guardou os silêncios e reconstruiu-os. Em cada silêncio da sua vida, falava com ela - como o fazia dantes, deitada ao seu lado, falando em silêncio, numa nudez absoluta, sem segredos nem medos. Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. Tudo o resto são apenas palavras, sons, frases, coisas que qualquer um pode dizer. Podemos desdizer hoje o que dissemos ontem, podemos gritar hoje, por ódio, o que ontem segredávamos por amor. Mas o silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado.
Conheço bem Albert e Marta, conheço bem a sua história, visto que sou o melhor amigo e confidente de ambos. Sei o quanto se amam no silêncio e à distância e não sei dizer como acabará a sua história. Ele destrói-se, ela defende-se. Cada um deles faz por desejar ou fingir desejar a salvação própria mas, acima de tudo, teme a salvação do outro. O silêncio é o que lhes resta, o que os une, uma finíssima película de tempo suspenso, para além da qual não há nada mais que a escuridão dos abismos. E, por isso, nenhum deles ousa qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer coisa que possa romper esse ténue fio que os prende à eternidade.
É uma história triste e sem fim feliz à vista. Conto-a, porque parece que ela encerra uma lição útil: nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrém os pensamentos vividos em silêncio. Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. Não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil."

in Não te deixarei morrer, David Crockett
Miguel Sousa Tavares

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