"«Deve ser horrível ser-se deixada por ti!» Albert nunca mais esqueceu quando é que Marta tinha dito esta frase. Estavam deitados na cama nus, era fim de tarde e tinham acabado de fazer amor. Um silêncio instalara-se entre eles e velava sobre os seus corpos transpirados, mas era tudo menos um silêncio de estranhos. Pelo contrário: era tão familiar, tão íntimo, tão intenso, que chegava doer de puro prazer. Era mais íntimo do que a própria nudez, mais devassante do que tudo o resto que faziam na cama.
E, entao, Marta dissera aquela frase, sem mais nem menos, assim de repente. Ele ficou calado, ela voltou a calar-se, nada mais disse e ficou outra vez o silêncio. Ele lembrava-se de ter chegado a pensar «posso dizer o mesmo», mas nada disse. Para quê? Sabia que Marta tinha razão, sabia que era por causa do que aquela frase encerrava que um dia Marta o deixaria - ela, antes dele.
Essa frase, essa terrível defesa, ele passeara-a depois, ao longo dos anos, ao longo das dezenas de outros corpos ou animais, ou o que se deva chamar a essa cofusa fusão de um corpo que não obedece á cabeça, de sentimentos que afinal não passam de sensações e onde tudo é desesperadamente contraditório: porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer; porque te amo, fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te amar - tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.
Com os anos, «eventually», como dizem os ingleses, Albert tornou-se um brilhante cirurgião nos hospitais. Ele, que verdadeiramente fora avesso à intimidade de qualquer outro corpo que não o de Marta, ocupava-se agora em dar vida a corpos silenciosos e inertes, de que não conhecia os pensamentos nem os segredos. E havia qualquer coisa de indefeso, de indigno, na rendição daqueles corpos entregues às suas mãos. Cortava com minúcia de cirurgião, mas em cada corpo de mulher sofria a ausência de Marta, porque os gestos lembravam-lhe o deslizar dos dedos pela sua pele.
Albert nunca recuperou da ausência fisíca de Marta. Mas guardou os silêncios e reconstruiu-os. Em cada silêncio da sua vida, falava com ela - como o fazia dantes, deitada ao seu lado, falando em silêncio, numa nudez absoluta, sem segredos nem medos. Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. Tudo o resto são apenas palavras, sons, frases, coisas que qualquer um pode dizer. Podemos desdizer hoje o que dissemos ontem, podemos gritar hoje, por ódio, o que ontem segredávamos por amor. Mas o silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado.
Conheço bem Albert e Marta, conheço bem a sua história, visto que sou o melhor amigo e confidente de ambos. Sei o quanto se amam no silêncio e à distância e não sei dizer como acabará a sua história. Ele destrói-se, ela defende-se. Cada um deles faz por desejar ou fingir desejar a salvação própria mas, acima de tudo, teme a salvação do outro. O silêncio é o que lhes resta, o que os une, uma finíssima película de tempo suspenso, para além da qual não há nada mais que a escuridão dos abismos. E, por isso, nenhum deles ousa qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer coisa que possa romper esse ténue fio que os prende à eternidade.
É uma história triste e sem fim feliz à vista. Conto-a, porque parece que ela encerra uma lição útil: nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrém os pensamentos vividos em silêncio. Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. Não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil."
26.2.09
Nada é mais perigoso do que o silêncio
in Não te deixarei morrer, David Crockett
Miguel Sousa Tavares
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